relato: vale dos vagalumes

“Os vaga-lumes desapareceram todos ou eles sobrevivem apesar de tudo?”

(Georges Didi-Huberman – A Sobrevivência dos vaga-lumes)

Este relato foi escrito durante mais de cinco meses. Apesar de o digital ser a ordem dos dias no contemporâneo (estamos num blog!!), a vida é artesanal. E a artesania é naturalmente lenta, não acompanha o tic-tac dos relógios, tampouco se prende no passar dos dias de um calendário. Por isso, também, a demora em tecer essa narrativa, sobretudo porque a intensidade dos encontros e seus efeitos ainda estão sendo sentidos por aquela que vos escreve. Mas isso é algo que Enio Paipa (sambudinho na-AMOR-ra-do!) já faz muito bem, por aqui e por onde pedala, escrevendo uma/várias histórias (e cartas) a mão, lenta e afetuosamente.

Além de artesanal, a vida é sazonal. E as estações também me ajudaram a escrever e sentir tudo isso. Esta é uma história vivida no verão, elaborada no outono e publicada no inverno. Mas meu desejo é que ela encontre você como um sopro de primavera, em que vaga-lumes saem lampejando discretos e livres no escuro, dançando vivos na noite, emitindo sinais marginais e sensuais de amor e sobre-vivências, apesar de tanta luz, apesar de tudo.

A história se altera toda vez que a gente (re)conta. Há muitos responsáveis pela criação do “Rolê no Vale dos Vaga-lumes”. Éramos cinco, piscando em distintas localidades, em vários cantos e meios do mapa. Para quem ainda não sabe, um bando de vaga-lumes pedalantes construíram um novo roteiro cicloturístico na região do Vale do Rio Itajaí, no interior de Santa Catarina, terra do Povo Xokleng-Laklãnõ. E por também ser terra indígena é que nos articulamos para reconstruir um dos primeiros roteiros de cicloturismo deste país com nome de árvore. E que também é chamado de Pindorama pelos povos originários (e significa “terra das palmeiras”). E o que tudo isso tem a ver com o rolê? É que para reconstruir algo a gente precisa antes destruir algumas coisas. Neste caso algumas ideias, rotas e histórias. A história se altera toda vez que a gente (re)conta (vale a pena repetir!).

Por falar em destruir, nosso aglomero só foi possível porque uma relação (monografica!) amorosa sofreu um pequeno grande abalo em meados de 2021. Ela não foi necessariamente destruída, pelo contrário. Mas é a partir dessa oscilação, (na época foi sentida como uma destruição emocional fudida, né não amigo Carlos?), que um tal de “Sharlie de Boulevard” chamou um, que chamou outra, que chamou mais um e outra e formamos uma pequena quadrilha querendo romper a bolha pandêmica e pedalar juntes em algum lugar desse país. (Glau, eu não te conheço, mas já te amo: primeiro porque tu faz nosso amigo muito feliz – ele está uma das pessoas mais apaixonadas que já vi -; segundo por ter contribuído com essa formação; terceiro por participar do nosso rolê desde sempre! Amiga ~posso te chamar assim?? ~ quero muito te conhecer e te dar um abraço!)

Mas voltando para o nosso rolê luminescente…

Essa cicloviagem começa em meados de janeiro de 20.22, ainda na pandemia de covid19. Na verdade, começou antes (toda viagem/história começa antes, afinal, como diz o mestre Nêgo Bispo, “a vida é começo, meio e começo!)). Teve gente que fez planilha, roteiro, marcou na sua agenda e na agenda de todes. Teve gente que, infelizmente, positivou para coronavírus e ficou isolado. Teve gente que acompanhou de longe. E teve gente que, afortunadamente, pode curtir a oportunidade de se aglomerar, entre amigues vacinades, depois de 2 anos de isolamento solidário, e pedalar entre montanhas na Floresta Atlântica (Nhe’ery para o Povo Guarani). O que mais rolou nesse rolê foi (des)organização, risos e boas conversas. Bebemos bem. Comemos (não tão) bem. Tivemos acesso à melhor janta na região dos lagos (Rio dos Cedros): Bar da Bia (um bar administrado pela Dona Bia, uma senhora autêntica e muito simpática, que faz uma comida caseira, servida no fogão a lenha, de repetir no mínimo 3x), e excelentes cafés(es) da manhã. Os cafés(es) eram tão bons, tão bons, cheios de gostosuras, que nossas saídas/inícios de pedal eram sempre após 10h, em pleno verão sulista. Sim, há muito calor no sul do país, acreditem.

Mas não nos faltou disposição para parar, antes da pior subida do trajeto, comer um pastel frito e beber a cerveja mais gelada do bar ainda fechado.  

A amizade é uma coisa muito bonita. A paixão pela bicicleta idem. Aliás, amizade e paixão foram condutores do nosso encontro. Além da amizade e da paixão, há outra característica que converge em nós: a transgressão. Pedalar nos movendo pela paixão (além de cuscuz, pão de queijo, cuca, cervejas, chocoleite, eticetera) é um ato transgressor. E também por isso nosso roteiro foi pensado para transgredir.

Não tínhamos certeza de quase nada, só que queríamos pedalar juntes, por um vale brasileiro colonizado por europeus, mas sem necessariamente seguir uma rota colonial. Mesmo porque também estamos descolonizando nosso giro e nossos circuitos, conforme nossa vontade e disposição. Isso tudo para dizer que criamos nosso próprio mapa, nossos próprios fluxos (e contrafluxos), nosso próprio circuito: o Circuito Vale dos Vaga-Lumes.

Não teve um dia em que alguém não dissesse “eu tou muito contente”. Ou que “tô feliz pra caralho de estar aqui com vocês”. Não teve um dia em que não incluíssemos um rio e/ou cachoeira para aliviar o calor infernal do Vale. Ao todo foram 6 dias pedalando e um pouco mais de 300 km entre 8 cidades. O roteiro foi acontecendo, e o desenhamos deste modo:

dia 1. blumenau (região dos recantos naturais) – pomerode 45km

dia 2. pomerode – timbó 55km

dia 3. timbó – rio dos cedros (região rio bonito) 42km

dia 4. rio dos cedros – benedito novo 60km

dia 5. benedito novo – rodeio – ascurra – indaial 52km

dia 6. indaial – blumenau 49km

clica aqui e veja fotos do vale dos vagalumes

Tudo (exatamente tudo) que rolou nesse rolê foi mágico, sobretudo pelas paisagens, pelo ritmo, pelas teorizações, subidas, banhos de rio e cachoeira, afetos e a luminescência do nosso encontro. Pensem o quanto é forte e bonita a potência da amizade e do amor. Tão potente quanto o brilho dos vaga-lumes. Eles, os vaga-lumes, produzem enzimas luciferases produtoras de bioluminescência (o brilho fluorescente) e brilham para sobreviver. Brilham para formar comunidades (acasalar!). Brilham para nos fazer imaginar outros mundos. E esses insetos sedutores nos inspiram a perceber outros modos de viver, viajar e nos relacionar entre nós e com a vida, para além do que está pronto e exposto. Uma vida artesanal, tecida (e escrita) a mão… e pés no pedal :))

esse texto foi escrito por Sheila Hempkemeyer, uma pessoa incrível que faz das errâncias da vida o melhor modo de educar. ama pedalar, estar na floresta e admirar fungos. e adoramos aproveitar a vida juntos! ;))

blumenau, santa catarina, brasil

é tudo nosso! #puravida

Brasil

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ciclista . janga . é tudo nosso . #puravida

5 comentários Deixe um comentário

  1. Que coisa linda esse relato. Muito colorido e profundo, consegui ver daqui. Amei cada palavra, moraria nelas. Descolonizar o olhar, os fluxos e as histórias.

    Obrigada Sheyla por compartilhar tanto afeto artesanal.

    Bjs

    Curtido por 1 pessoa

  2. Alyne e Enyo (bonyto!) que satysfação estar aquy e poder ser lyda por pessoas querydas nesse blog lyndo e cheyo que bonytezas.

    Amor da vyda, agradeço o espaço e a oportunydade de vyver contygo essa hystórya… te amo!

    Curtido por 1 pessoa

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